Este blog tem acompanhado mudanças intensas em minha vida e carreira. Nasceu quando eu estava mudando de profissão pela primeira vez, saindo da área de design e iniciando meus caminhos oraculares. Achei que ele morreria nessa segunda transição profissional – pois há mais de dois anos não tenho mais realizado atendimentos e ministrado aulas de astrologia e de tarot. Após alguma reflexão, contudo, decidi que o blog seguiria vivo e acompanharia os meus passos; transformaria sua persona, assim como eu.
Apesar dos meus planos e desejos iniciais, a vida exigiu que eu experimentasse novas situações e explorasse outros horizontes – internos e externos. Fui apresentada e me apaixonei, nesse meio tempo, pela pintura, e estou me dedicando cada vez mais a ela. São aulas na Abra, pós graduação em arteterapia no IJEP, visitas à exposições e museus, estudos práticos e teóricos do ato de pintar. Acabei me descobrindo na expressão abstrata, o que nunca foi meu objetivo inicial. Na realidade, nem havia um objetivo inicial. Ao contrário do que sempre aconteceu em minhas incursões profissionais, fui deixando o universo me conduzir e me dar as pistas do rumo que deveria seguir (graças à muita terapia, mas isso fica para outro texto).
Confesso que é bastante difícil, e mesmo às vezes desanimador, pensar em investir o tempo e a energia necessários para a construção de uma nova carreira depois dos 40. Ainda estou formatando meus projetos, e pensando como posso reunir minha sensibilidade e intuição em relação ao outro com a pintura. Mas algo me diz – o chamado do self, talvez – que devo seguir nessa direção.
O processo de pintura tem sido revelador para mim em múltiplos aspectos. Prazeroso e dolorido. Excitante em alguns aspectos, chato em outros. E muito angustiante em determinadas situações. É muito difícil encontrar o equilíbrio no processo entre se auto aperfeiçoar e ter controle, por um lado; e por outro deixar fluir, deixar-se guiar.
Tive uma experiência, recentemente, que foi bastante reveladora. Eu não planejo as minhas pinturas abstratas, elas vão acontecendo e se revelando à medida em que vou pintando. Era o meu primeiro contato com uma tela grande, e quando me dei conta, percebi que estava pintando a paixão. Sim, a temática daquele quadro seria esse sentimento intenso, avassalador, que nos toma de assalto e nos deixa obcecados.
Comecei a pintar a base do quadro adorando as cores que estavam surgindo. À medida que a pintura foi avançando, entretanto, foram surgindo algumas combinações que me deixaram insatisfeita. Logo dei um jeito de seguir adiante e ainda pensei: “ilusão minha pintar um quadro sobre paixão e achar que não iria me frustrar no processo”. A pintura seguiu por mais umas duas, três horas, no final das quais eu estava completamente extasiada com o resultado, achando tudo lindo, mostrando para vários amigos e postando fotos nas redes sociais. E assim fiquei, com o quadro ali no cavalete no meio da sala mesmo, olhando para ele o tempo todo.
Passadas umas duas horas, depois de toda a empolgação, comecei a ver todo o tipo de defeito no quadro. Aquilo que antes me encheu de contentamento estava começando a me causar estranheza, sensação de vazio, de algo inacabado. Comecei a achar o quadro tosco, com cara de artesanato. E gradualmente passei a odiar o que então eu tinha amado. Disse para mim mesma que precisava tirá-lo da minha vista até o dia seguinte, porque meu desejo era o de jogar tinta por cima de tudo e acabar naquele instante com ele.
No outro dia eu o olhei com mais calma. Pensei que não estava de todo mau, mas poderia mexer aqui e ali para dar uma equilibrada – eu quis consertar a paixão. Trabalho usando óleo e acrílica. A tinta óleo é uma delícia de trabalhar, demora a secar e você consegue alterar o que está feito. Mas a acrílica seca muito rápido. No que comecei a mexer, a pintura começou a descamar. Eu pensei: “nossa, parece minha pele” (eu sempre descamo um pouco depois de tomar sol). E quanto mais eu mexia, mais estragava, e mais eu tentava arrumar, e mais pensava que era melhor não ter mexido mas agora já era, e mais frustrada eu ficava, até que dei um jeito de deixar “aceitável”, e talvez não tão perceptível. Mas eu sabia, e sei, que tem uma “mancha” ali.
Bom, para minha salvação, no outro dia tinha sessão de terapia. Eu estava tão frustrada com o quadro que já estava questionando todo meu movimento, minha vontade de seguir em frente. E minha terapeuta me fez perceber o quão simbólica e visceral tinha sido essa experiência: eu havia vivido a “paixão” não só no próprio processo de pintura, mas também na minha relação com o quadro.
Esse quadro passou por várias modificações, não havia ainda ficado satisfeita com o resultado. Vários meses depois de iniciado, peguei a tela que havia abandonado temporariamente e finalmente cheguei em um resultado que gostei, tanto em termos estéticos como expressivos. Finalmente, o quadro ficou pronto.
Como disse antes, a paixão é avassaladora. Nos toma, nos preenche, e muitas vezes até mesmo nos cega. Achamos bonitos até os defeitos, estamos tão enlevados que deixamos passar muitas coisas que tem potencial de nos incomodar. Além disso, a paixão é um sentimento tão intenso e extremado que polariza fácil para seu inverso: a ojeriza. No processo de pintar o quadro, me apaixonei por ele; depois comecei a observá-lo melhor, ver todos aqueles defeitos que estavam ali, e a paixão se transformou em aversão. Ainda tentei “consertar”, mas o quadro descamou como a “pele”. É muito interessante o simbolismo da pele descamando num quadro sobre paixão. Se por um lado a pele indica o que está na superfície, por outro está ligada diretamente ao desejo, ao contato, à química primordial entre os corpos. “É coisa de pele”. Libido.
Da mesma forma que ocorre quando vivemos grandes paixões, elas nos levam ao êxtase e ao sofrimento. E elas deixam marcas. Meu quadro sobre a paixão tem uma cicatriz, e talvez, para olhos mais treinados, seja a primeira coisa que chame a atenção. Mas o mais provável é que essa cicatriz passe despercebida, seja imperceptível. Como acontece conosco, as pessoas podem não notar a diferença entre antes e depois de passarmos por experiências dessa natureza, assim como podem não notar a diferença entre antes de depois de eu ter tentado consertar o quadro. E as pessoas podem não notar a marca, mas a marca está lá.